Em rodas de conversa sobre basquete, cada vez mais vejo pessoas dizendo que faltam “armadores clássicos” na atualidade – ou seja, aqueles atletas responsáveis por conduzir e passar a bola acima de pontuar. Steve Nash e Jason Kidd seriam personificações deste tipo de jogador em tempos recentes. Bem, pois eu tenho más notícias para você: ocorre que, na verdade, o armador clássico está extinto. E, ao contrário do que muitos saudosistas fazem parecer, isso é algo bom.
Quando o basquete começou, o nível era muito mais baixo do que agora. Isso porque o esporte não tinha tantos praticantes, mesmo nível de profissionalização e dinheiro envolvidos. Não havia também um conhecimento tático consolidado sobre o jogo – algo que só o tempo traz. O armador era o jogador com maior habilidade com a bola, na época. Ele trazia a bola até o ataque, chamava uma jogada e passaria para o atleta em melhor posição. Simples assim. Bob Cousy, lenda do Boston Celtics nos anos 1960, é o maior símbolo desta geração de jogadores da posição.
Mas a posição evoluiu com o passar do tempo. Gradualmente, foi se tornando necessário que o armador também pontuasse. O motivo é bastante óbvio: se ele apenas passa a bola, seu jogo se torna previsível. Atletas com maior arsenal ofensivo são imprevisíveis, pois a marcação nunca sabe o que vão fazer.
Insiro aqui uma anedota pessoal: tive um técnico de basquete na adolescência que dizia que a melhor finta que um jogador poderia ter para infiltrar era ser um bom arremessador. Quem arremessa bem tem o defensor mais perto, dando melhor chance de um corte em direção à cesta. É esse o princípio. Se o armador tem um bom arsenal ofensivo, a defesa tem que se preocupar com o passe e sua capacidade de pontuar. É muito mais difícil de se marcar.
A segunda geração de armadores – talvez, a mais longeva – é o passador/arremessador. Os expoentes desta fase, geralmente, tinham excelente chute de fora, para surpreender a defesa e forçar o marcador a estar sempre “dividido”. Assim, faziam grandes jogadas baseadas na hesitação do marcador. Eles eram os homens de confiança de seus técnicos em quadra. Exemplos para ilustrar tal geração não faltam. Falando só da década de 90 para cá, podemos citar: John Stockton, Steve Nash, Gary Payton e tantos outros que levariam horas para serem citados aqui.
É verdade que, ao longo dos anos, tivemos jogadores que estavam muito a frente de seu tempo. Quero citar aqui dois especificamente: Magic Johnson e Oscar Robertson. O primeiro dispensa apresentações: cinco títulos com o Los Angeles Lakers jogando em todas as posições possíveis. Já o segundo não teve tanto sucesso em playoffs e ganhou apenas um anel de campeão da NBA. No entanto, é o único atleta da história a ter média de triplo-duplo em uma temporada: 30.8 pontos, 12.5 rebotes e 11.4 assistências (1962). Robertson sempre foi um ala-armador no papel. Mas, em quadra, ele era claramente o armador.
Apesar da evolução, o padrão ainda era o mesmo: pontuador ou não, o armador continuava sendo o principal articulador do sistema ofensivo. Em que momento isso mudou efetivamente? Mais ou menos, quinze anos atrás (e eu digo mais ou menos porque isso é muito recente, então não é algo devidamente estudado e registrado na história do basquete).
Tivemos um fenômeno muito interessante na NBA desse momento em diante: contrariando a histórica lógica de sistemas ofensivos baseados em grandes jogadores, pouco a pouco, técnicos começaram a trazer sistemas ofensivos baseados em padrões. Treinadores mais antigos tinham os famosos “playbooks”, um conjunto de jogadas ensaiadas que o armador selecionava a cada posse ofensiva. Logo ficaram manjadas e propiciaram o uso dos sistemas de padrão.
No novo cenário, o time possui um padrão de movimentação durante a posse de bola. Não é uma jogada ensaiada, que tem começo meio e fim. Envolve diversas movimentações e trocas de posição entre os atletas em quadra, até que uma boa oportunidade se apresente. Aconteceu antes na NCAA. O primeiro sistema de padrão a dar grandes resultados foi o triângulo de Phil Jackson, no Chicago Bulls dos anos 90. Dos anos 2000 para frente, vários treinadores começaram a adaptar sistemas tradicionais do basquete com a “flex offense”, “motion offense” e “passing game” para a NBA.
O perfil de jogador mudou com a alteração tática do jogo: se todos os jogadores trocam de posição durante uma movimentação, todos eles devem ser capazes de desempenhar diferentes papéis. Os alas devem passar a bola, os pivôs devem arremessar de longe e os armadores devem saber jogar no garrafão. Da mesma maneira que hoje temos pivôs arremessadores, também temos um novo modelo de armador – sim, muito mais completo que antigamente. A extinção do armador clássico não implica em algo ruim. Pelo contrário. Significa que o basquete evoluiu para um jogo muito mais dinâmico e imprevisível. Jogadores são cada vez mais completos e preparados.
Vamos esquecer as divisões de posições. Hoje, cada atleta consegue atuar ou defender duas ou três posições sem perder qualidade. Ao invés de cinco posições bem definidas, temos em quadra os cinco melhores de cada equipe. A versatilidade e capacidade de improvisação são muito valorizadas. “Especialistas” em apenas um fundamento também estão em extinção – e isso é bom, pois significa que todos eles caminham para ter várias habilidades.
Tony Parker, armador do San Antonio Spurs, é um dos símbolos da nova geração de armadores. Ele comentou recentemente que vivemos, talvez, a era mais competitiva em termos de atletas da posição um. Quase todos os times têm opções de altíssimo nível. Se pensarmos bem, é verdade. E também é verdade que quase nenhum deles pode ser considerado um armador clássico.
Se é fato que não temos armadores clássicos e também nunca tivemos tantos bons armadores, então que falta faz o armador clássico? Nenhuma. Quem reclama não passa de saudosista. E, em certa medida, é bom ser saudosista. Mas é necessário também reconhecer o nível cada vez mais alto para o qual o basquete caminha. Hoje, o esporte é muito mais dinâmico e a margem de erro é menor. A exigência por atletas mais versáteis e completos vem daí. E convenhamos: os armadores atuais têm correspondido à altura.