Uma carta aberta sobre treinadoras, por Pau Gasol

Bicampeão da NBA, veterano pivô do Spurs defende presença de treinadoras na liga e declara apoio à assistente Becky Hammon

Fonte: Bicampeão da NBA, veterano pivô do Spurs defende presença de treinadoras na liga e declara apoio à assistente Becky Hammon

Por Victor Saft, parceiro de Matheus Prá (@blockpartty)

 

Pau Gasol | San Antonio Spurs

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Eu só gostaria de falar algo sobre meus pais.

Eu fui criado nos arredores de Barcelona, filho de dois grandes profissionais. Meu pai era um enfermeiro e minha mãe uma médica. Naturalmente, eu estudei ciências – e, depois do Ensino Médio, até fiz um ano de Medicina, antes de eventualmente me dedicar totalmente ao basquete. Às vezes, penso o que teria acontecido se eu continuasse no ramo da Medicina e seguisse os passos dos meus pais.

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Eu me lembro de quantas vezes as pessoas se confundiam dizendo que meu pai era o médico e minha mãe a enfermeira – isso acontecia mais do que deveria, na minha cabeça. Para mim, minha mãe era uma médica de sucesso… era só isso. E não me leve a mal: eu admiro o trabalho duro do meu pai também. Mas cresci sabendo que minha mãe entrou em uma rigorosa escola e em uma faculdade, por isso teve um trabalho mais proeminente. Isso não era estranho, ou algum tipo de julgamento. Era somente a verdade. E nós nunca pensamos nisso duas vezes.

Meus irmãos e eu sempre admirávamos essa postura dos nossos pais.

E agora que sou um adulto, e pensando em ser um pai em um futuro próximo, percebo como fui sortudo de ter sido criado em um ambiente assim. É um ambiente onde apenas uma pergunta precisa ser feita – não é sobre você ser o “tipo certo de pessoa” para o seu trabalho. Ao invés disso é sobre o quão bem qualificado você é para este trabalho.

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Em 37 anos, eu posso honestamente falar que, eu nunca pensei na minha mãe como uma médica “feminina”.

Para mim, ela sempre foi apenas… uma médica.

E uma das melhores também.

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A razão pelo qual eu comecei falando para vocês sobre meus pais é que a história deles me lembra muito o que está acontecendo na NBA hoje em dia. Especificamente sobre como, em 72 anos de liga, nunca tivemos uma técnica na NBA. Ainda mais especificamente, me faz pensar na Becky Hammon: uma técnica que está sendo o centro de várias discussões ultimamente, a qual eu tive a oportunidade de jogar para em San Antonio.

Mas se você acha que estou escrevendo isso para argumentar se a Becky é qualificada ou não para ser uma técnica na NBA… bem, então você está enganado. A parte óbvia é que: primeiro, ela foi uma excelente jogadora – com a mente de uma armadora de elite. E segundo, ela foi assistente técnica do melhor técnico da história. O que mais você precisa? Mas é como eu disse – não estou aqui para fazer esse argumento. Falar em nome da treinadora Hammon seria muito paternalista. Para mim, seria estranho se times da NBA não estivessem interessados nela para o cargo de treinadora.

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O que eu gostaria de fazer é acabar com alguns argumentos fracos sobre a capacidade da treinadora Hammon – e a sobre a ideia de uma técnica na NBA – que eu vi por aí.

O argumento que eu vejo com frequência é o mais fácil de se derrubar: a ideia de que, no nível mais alto de basquete, uma mulher não pode treinar homens. “Isso, técnicas conseguem treinar no basquete universitário feminino ou na WNBA,” e o argumento continua. “Mas na NBA? A NBA é diferente.”

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Primeiro, eu preciso te falar uma coisa: se você está usando esse tipo de argumento para alguém que realmente já jogou basquete de alto nível, você só vai parecer uma pessoa bem ignorante. Mas eu ainda tenho uma resposta mais simples – estou na NBA há 17 anos. Eu ganhei dois títulos… Eu joguei com alguns dos melhores jogadores desta geração… e joguei para duas das mentes mais brilhantes na história do esporte – Phil Jackson e Gregg Popovich. E eu posso te garantir: Becky Hammon consegue comandar um time. Não estou falando que ela consegue treinar muito bem. Não estou falando que ela consegue treinar mais ou menos. Não estou falando que ela quase consegue treinar no nível dos técnicos masculinos da NBA. Estou dizendo: Becky Hammon consegue treinar uma equipe da NBA. Ponto.

Vou te dizer uma historia rápida para ilustrar o meu ponto. Este ano, em um treino realizado alguns meses atrás, eu estava treinando pick-and-roll com o Dejounte Murray. Era um treino normal, só nos dois sozinhos em uma das cestas: eu fazia o corta-luz e: ou iria para o arremesso ou iria para o garrafão. Se eu fosse para o arremesso, Dejounte me daria um passe na altura do peito. Se eu fosse para bandeja seria um passe picado. Como eu disse, era um treino muito básico – nós fazíamos isso um milhão de vezes.

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Mas o que eu me lembro desse treino, em específico, é que, em algum ponto, a treinadora Hammon nos parou no meio do ataque. Os técnicos Hammon, Borrego (James) e Messina (Ettore) vieram, e a Becky disse para o Dejounte, “DJ, OK – seu passe picado? Está muito baixo. Você tem que acertá-lo exatamente onde é necessário.” Então, depois nós conversamos sobre como eu precisava da bola um pouco mais precisa, com um pouco mais de jeito, para que eu conseguisse uma chance maior de pontuar no garrafão. Então, nós repetimos esse movimento algumas vezes, mudando de lado na quadra. É claro que, Dejounte sendo Dejounte, aprendeu rápido – e, em um instante, nós estávamos excelentes naquilo. Mas alguma coisa sobre aquele treino me marcou. Tipo… o nível de conhecimento de jogo que a Becky mostrou, entende?

Ela percebeu um pequeno detalhe com o canto do olho – e, instantaneamente, já soube o problema e a solução. Não apenas isso, mas nós também conseguimos nos comunicar de um jeito que nós chegamos no resultado preciso. É um bom lembrete, eu diria, da importância de uma boa comunicação entre membros de um time – especialmente no nível da NBA. Eu acho que não recebi um passe ruim pelo resto da temporada.

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Outro argumento que eu vi sendo usado – talvez até mais idiota que o anterior – é que a Becky subiu para a sua posição atual porque ter ela no time faria uma “boa impressão do setor de Relações Públicas do Spurs”.

O quê?

É sério: O quê?

Não. Nós estamos falando de NBA aqui – um lugar onde muito dinheiro está em jogo e há pouca paciência para a mediocridade. Também estamos falando do San Antonio Spurs, uma das franquias mais vencedoras deste século: um sistema que produziu David Robinson, Tim Duncan, Manu Ginóbili, Tony Parker – e estes são só os do Hall da Fama. Esse é um time que ganhou 50 ou mais jogos por 18 temporadas seguidas, e conquistou cinco títulos nos últimos 20 anos.

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Você realmente espera que o Pop desenvolva sua comissão técnica diferente dos seus jogadores? Claro que não.

O único motivo para o Pop fazer algo é saber se isso vai nos ajudar de apenas um modo… e isso não é ganhar boa impressão do setor de Relações Públicas.

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É ganhar. E ganhar do jeito Spurs.

OK – e tem mais uma coisa. É quase estúpido colocar isto aqui… mas ao mesmo tempo, por outro lado, eu acho bem importante. E chega a algo sobre esta liga, em um contexto mais amplo, que eu estou pensando bastante recentemente.

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É a ideia de que, se tivesse uma treinadora na NBA, existiria algum tipo de “estranhamento no vestiário.”

Talvez você esteja rindo para si mesmo lendo isso. E eu entendo. É ridículo. Mas acho que é importante levar a sério, por um momento – só em termos de quão vergonhoso é para esta liga ter pessoas que realmente pensam assim.

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Primeiro, a ideia em si: então, é um mito. Me dá um tempo, né. Não há o que dizer sobre isso. Os jogadores se vestem em um lugar, a comissão técnica em outra. OK? E sim, dentro da parte dos técnicos, Becky tem o seu espaço privado. Mas o ponto é – você não vê o técnico compartilhando do mesmo espaço que os jogadores enquanto se trocam. Isso não acontece. Então, tudo que eu posso lhe falar é que, tendo uma década e meia de experiência pessoal… essa linha de pensamento – como eu disse, é vergonhosa. Em termos de vestiário e de bastidores, não há uma diferença prática entre ter um treinador ou uma treinadora nesta liga.

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Mas também acho que isso vai mais fundo, quando as pessoas fazem esse argumento – de um jeito que realmente me incomoda. Vai para essa ideia de que… enquanto nós estamos fazendo todos esses importantes avanços na nossa sociedade, em termos de aumento da nossa inclusão social, e fazendo esforços para ideias de igualdade e diversidade, criando um mundo mais inclusivo… por algum motivo, os esportes deveriam ser um exceção. É essa ideia, para algumas pessoas, que os esportes deveriam ser este abrigo, onde é OK ter a mente fechada – como uma bolha que abriga toda a nossa ignorância. E nós, como atletas, se tivermos algum problema com o jeito como as coisas são, devemos (como dizem por aí) “ficar apenas nos esportes”.

Então, quando eu vejo argumentos – ou até piadas – de que não devemos ter treinadoras na NBA por causa das “situações de vestiário” ou qualquer coisa… Eu acho que isso me lembra que, por mais que tenhamos avançado tanto nesta liga nos últimos anos… ainda temos muito para mudar. Tipo, vamos ser sinceros: há incentivos para a diversidade de gênero no trabalho em basicamente toda a indústria no mundo. Mais importante – isso é o certo. E, ainda assim, a NBA deveria ter um passe livre só porque alguns fãs querem pegar leve conosco?… por que somos “esportes”?

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Realmente espero que não.

Espero que a NBA nunca se sinta satisfeita em ter uma visão de futuro “para uma liga esportiva”. Vamos nos esforçar em ter o pensamento mais avançado do que qualquer outra indústria.

Semana passada, não sei se você viu, mas o Suns contratou o primeiro técnico da história da NBA nascido na Europa, Igor Kokoškov.

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De qualquer maneira, isso foi uma notícia muito legal para a liga. Mas em um nível pessoal… cara, vou ter que te falar: foi um momento especial para mim. São 17 anos desde que fui escolhido no draft – e ainda consigo me lembrar de comentários na época. Era tipo, Ah, não… vocês não podem escolher um europeu com a terceira escolha. É loucura. Talvez no fim da primeira rodada. O garoto tem potencial, mas top 5??? No Top 5… eles estão procurando por um jogador que seja a cara da franquia. Alguém com instinto assassino e capacidade de liderança. E esses europeus – eles são moles, cara. Não, você não pode pegar esse cara com a terceira escolha.

E é claro que eles me escolheram na terceira escolha. Agora, você vê que jogadores europeus são bem cotados no draft. É muito comum. Este ano, com Luka Dončić, quem sabe – talvez outra primeira escolha venha da Europa.

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E está acontecendo a mesma coisa com os técnicos. No começo, nenhum time na liga estava interessada em assistentes estrangeiros. Mas alguns times inovaram e começaram a fazer… e tiveram sucesso. E então você vê outros times fazendo o mesmo. E, agora, Igor tem o trabalho de comandar o Suns.

Eu não quero comparar Igor com a Becky. Não acho que seja a mesma coisa. Mas eu penso que isso é maravilhoso, sabe, ver a NBA começar a ver o resto do mundo. Afinal de contas, é um mundo grande, não é verdade? E eu penso que toda vez que você expande o seu horizonte para algo novo e significativo… isso só pode te fazer uma pessoa melhor.

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E também é por isso que eu estou tão feliz em ver esta liga estar à frente de tantos problemas importantes. E vejo que estamos nos juntando por algo tão importante como o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam)… Vejo quando caras como o DeMar (DeRozan) e o Kevin (Love) falando e se abrindo quanto aos seus emocionais… Vejo quando pessoas como o Adam Silver, nosso comissário, marchando em uma parada LGBT… Vejo quando MVPs como Steph (Curry) e LeBron (James) mostrando para o mundo que ninguém é famoso demais para usar suas redes sociais para defender o que acreditam… e, é claro, vejo quando uma franquia como o Milwaukee Bucks está dando a oportunidade de uma entrevista para o cargo vago de treinador principal para um candidato que – seja homem ou mulher – absolutamente merece.

Eu vejo isso em todo lugar na liga hoje, e isso me enche de orgulho.

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Para mim, esta liga é minha família. E uma das coisas que aparecem quando se tem uma família… é que vocês são os únicos que podem ser os mais críticos um do outro. Vocês são os que podem contar um ao outro como é. Pois, no final do dia, vocês sabem que tudo é só amor.

Então, o que eu diria para a minha família da NBA agora, eu acho que é tipo: ei, vamos manter este grande trabalho. Vamos nos orgulhar.

Mas também não podemos nos satisfazer.

Vamos reconhecer que um protesto não significa que nós resolvemos o problema da desigualdade racial neste país. Uma parada não significa que nós estamos fazendo tudo que podemos para o movimento LGBT. E uma entrevista para o cargo de treinador não significa que resolvemos o problema da diversidade de gênero no nosso trabalho.

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Uma liga mais complacente pode dar uma olhada nessas conquistas – e se sentir confortável falando, OK, nós conseguimos, nós terminamos. Mas a NBA não é uma liga complacente.

É uma ótima liga.

E para mim, uma ótima liga daria uma olhada nisso, e diria o seguinte: nós trabalhamos muito e mostramos um grande crescimento… mas ainda há muito o que fazer. Uma ótima liga diria: este é o progresso – mas esta não é a linha de chegada.

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Espere e veja. Estamos apenas começando.

Pau Gasol

SAN ANTONIO SPURS

 

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