Domingo, 29 de novembro de 2015. Cheguei em casa por volta das 23h50, e sendo o dia seguinte um feriado aqui no Distrito Federal, enfim teria tempo para estudar e escrever sobre um tema que, há no mínimo três dias, já me ocupava a cabeça: Kobe Bryant está se aposentando aos poucos, e pouca gente está percebendo isso direito. Como de costume, em poder do meu telefone vasculho o Facebook e o Twitter atrás de notícias, fotos, fofocas da vida alheia para depois me encaminhar pra cama. Eis que surge o azar pra mim: havia poucas horas e o ala-armador do Los Angeles Lakers em forma de poema havia comunicado ao mundo a decisão de deixar o basquete ao final da temporada 2015-2016 da NBA. Vamos deixar claro que o pior pra mim não foi a aposentadoria em si, mas ter perdido a chance de escrever sobre aquilo o qual o mundo do basquete terá como foco nesta semana. Que azar…
Pensando bem, sorte será ter ainda até o mês de abril para podermos ver a camisa 24 do time roxo e dourado de Los Angeles tremulando pelas quadras, seja o Staples Center, seja em jogos fora de casa onde, a partir de já, Bryant começa a se despedir aos poucos, jogo a jogo, noite a noite.
Eu sou Lakers. Eu sou Lakers por causa de Kobe Bryant. O meu primeiro contato com a NBA foi em 1998-1999, nas Finais de um Madison Square Garden completamente lotado. Ainda sonho em ir a Nova York, pisar naquele ginásio, relembrar a minha infância e onde tudo começou pra mim. A TV Bandeirantes transmitiu aquela decisão entre o New York Knicks e o San Antonio Spurs sempre por volta das 22h ou 23h de Brasília. O Knicks era bem legal para um moleque de nove anos como eu: tinha um tal de Spreewell, camisa 8, com umas trancinhas no cabelo, que chamava o jogo toda hora. Eu me amarrava. Mas o Spurs tinha um tal Robinson que os narradores não cansavam de elogiar, um tal Duncan que eles falavam ser o futuro melhor pivô da NBA, eram superiores os de uniforme preto.
Deu Spurs naquela decisão, não tinha como não dar. Eu não sei o que houve exatamente e o meu contato com o basquete americano ficou extremamente reduzido até 2004: veja bem, mal existiam as operadoras de televisão por assinatura, a Internet era algo extremamente difícil em termos financeiros, e eu morava em uma cidade-satélite há 50 km de Brasília. Na banquinha de revistas e jornais (que hoje em dia vende tudo, menos revistas e jornais) eu só comprava gibi da Turma da Mônica, brilhava os olhos na Placar que eu não tinha como pagar e o dono nunca deixava a gente ver a capa da Playboy. Não tinha essa de figurinha cromada de Ênebíêi: não que o meu dinheiro desse pra isso! A Bandeirantes de novo me trouxe para caminho do bem, da glória, da salvação: em Atenas-2004, o torneio olímpico de basquete masculino via a história ser escrita com a inacreditável final entre Argentina e Itália. Os Estados Unidos tinham caído para o baloncesto hermano liderado por um milagre de Manu Ginobili na semifinal, a Lituânia não fez frente aos Azzurri e eu voltei a acompanhar aquele tal Duncan, ao lado agora de um tal Iverson, outro tal Marbury, além de uns moleques bem novos e de nomes esquisitos, tipo LeBron, Carmelo e Dwyane. Não tinha qualquer John ou Trevor ou Chris. Me joguei de cabeça na NBA. Me afundei de uma forma que assistia, dia após dia, noite após noite, seja pelo VHS que um amigo gravava na ESPN da sua TV por assinatura, seja pela Internet da casa de um primo em vídeos curtos do League Pass, fosse como fosse. Conheci o Lakers. Conheci Kobe Bryant.
Que sorte que eu tive!
Claramente, eu só fui saber das histórias dos três campeonatos seguidos do “primo rico” de Los Angeles depois. As vitórias sobre o Philadelphia 76ers em 2000, Indiana Pacers em 2001 e New Jersey Nets em 2002 até ganharam outros tons quando se imerge e se descobre as batalhas épicas contra Sacramento Kings, Portland Trail Blazers e o já citado Spurs, talvez mais difíceis em níveis domésticos do que as Finais da Liga contra os times da Conferência Leste, para se ganhar a Conferência Oeste. Peguei o rescaldo da dura derrota das Finais em 2003-2004 para o excelente Detroit Pistons e da briga, só muitos anos depois resolvida, entre Bryant e Shaquille O’Neal, os dois pilares do time tricampeão que chegou a quatro finais em cinco anos. A partir dali, acompanhei tudo: a troca que trouxe Lamar Odom; a companhia dos terríveis Smush Parker e Kwame Brown no quinteto inicial das partidas; a extraordinária temporada de mais de 35 pontos de média por cotejo; o jogo dos 81 pontos contra o Toronto Raptors; a construção de um bem melhor time com a chegada de Pau Gasol e as voltas de Derek Fisher e, principalmente, o técnico Phil Jackson; as duas finais contra o Boston Celtics que remontaram à NBA dos anos 1980; o bicampeonato em 2009 e 2010, contra o Orlando Magic e a revanche contra o Celtics; o começo da queda daquele time estelar, mas que já não tinha tanta força para acompanhar outros postulantes, como o Dallas Mavericks e o Oklahoma City Thunder; as saídas de Odom, Gasol, Fisher e Jackson; a tentativa mais que frustrada de união com Dwight Howard e Steve Nash; e as contusões de Bryant. As contusões de Bryant. Que azar…
Kobe sempre foi um jogador extremamente intenso. Para o bem e para o mal. Seu comportamento é questionado, amado e odiado em fatias iguais. Há os que o defendam a ferro e fogo, aqueles que dizem que o verdadeiro basquetebol necessita de empenho diuturno, autoconfiança exacerbada e jogo psicológico afiado. Há que os linchem o ala-armador, o releguem à alcunha de “fominha”, arrogante e falador de bobagens. A tênue linha entre que o poderia diferenciar essas facetes, de repente, nunca existiu: Bryant foi, ao mesmo tempo, autoconfiante demais para ganhar jogos sozinho, pouco solidário para afundar seu time em outras oportunidades, um mestre do blefe para desestruturar adversários somente com palavras e olhares, um catalisador de problemas dentro do próprio vestiário.
Uma coisa que não se pode negar é que o tenha feito para vencer. E venceu. Com a camisa 8 foram os já citados três campeonatos formando uma das melhores duplas da história ao lado de O’Neal. Com a camisa 24, sua liderança foi primordial para um bicampeonato no final da década passada. Com a camisa 10 da seleção norte-americana, Bryant desfilou duas medalhas de ouro olímpicas consecutivas no peito: em Pequim-2008 e em Londres-2012. Uma de suas recentes declarações dava conta de sua vontade em estar no Rio de Janeiro, em 2016, para a tentativa de um monstruoso tricampeonato olímpico de basquete. Não dá pra duvidar que ele vá tentar. A sensação que fica é de que Kobe tentou. Tentou mais uma vez. Tentou até perceber que… Dessa vez, perdeu para si mesmo. Não perdeu por conta dos companheiros, em razão das defesas adversárias, em razão de uma noite ruim: perdeu para seu próprio corpo. Acontece pra todo mundo. Que azar…
As últimas duas temporadas foram terríveis para o astro. Bryant atuou em apenas 41 jogos, um quarto das pelejas possíveis caso se levasse em consideração apenas os 82 encontros obrigatórios da temporada regular. Com ele saudável, a chance de o Lakers alcançar os playoffs é e sempre foi real. Sem ele, praticamente inexiste. Seu tendão de Aquiles rompido, seu joelho torcido e demais contusões na carreira – foram 22 ao todo até março de 2014, quando o USA Today fez postagem de levantamento realizado por um jornalista setorista da equipe a respeito e – o forçaram a duas campanhas canceladas em razão da saúde, recuperações mais que dolorosas, e bastante tempo fora das quadras.
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Talvez um tempo que ele nunca tenha desfrutado enquanto de sua vida adulta. A vida em família com esposa e filhas, a inútil luta contra a idade que já bate em 37 anos, a diminuição da importância do esporte na vida de um atleta e homem completamente realizado. Kobe Bryant estava se aposentando aos poucos e todo mundo já sabia disso: só não se queria acreditar. Se o estilo feroz e voraz dos primeiros anos o alçou a astro e favorito dos fãs ainda muito jovem – foram, ao todo, 17 seleções para o Jogo das Estrelas -, a consistência do auge o fez cunhar seu próprio apelido – Black Mamba, uma rara espécie de serpente extremamente veloz e mortal – e a experiência e o autoconhecimento guiaram seu jogo nos últimos anos – quando o próprio atleta se intitulava como Vino, um incentivo a tentar ser cada vez melhor enquanto mais velho -, as decepcionantes atuações individuais e coletivas limitaram o entusiasmo de Kobe. O Lakers faz campanha decepcionante para a grandeza da franquia – até o momento, apenas duas vitórias em quinze partidas – e Bryant tem médias consideradas apenas regulares para jogadores que pudessem estar em ascensão: entretanto, tem as piores percentagens de aproveitamento de arremessos em sua carreira de 20 anos com a segunda maior equipe em número de títulos na história da NBA. Que azar presenciar a queda depois de tantos anos de um jogador que não podia ser alcançado pelos outros. Que não podia ser alcançado por ninguém em seu auge.
Kobe deixa marcas e recordes. Um caminhão deles. Que sorte de quem pôde presenciá-los. É o atleta que mais jogou temporadas com apenas uma equipe (20), por 15 vezes foi eleito para o time da temporada da NBA, em 12 oportunidades esteve no time defensivo da época, é o jogador mais jovem a chegar a marca de 30 mil pontos, é atualmente o terceiro maior pontuador da história da Liga, o segundo atleta a mais marcar pontos em uma única partida e defende as marcas de pontos, jogos, minutos jogados, arremessos convertidos (seja de dois pontos, de três pontos ou de arremessos livres), roubos de bola e outros na história do Los Angeles Lakers, franquia que já contou com outras lendas como Jerry West, Kareem Abdul-Jabbar e Magic Johnson. Outras lendas. Kobe é mais uma delas.
São cinco títulos em sete finais disputadas, um prêmio de melhor jogador da temporada (2008) e dois prêmios de melhor jogador das Finais (2009 e 2010). Diversas publicações especializadas alertam para que ele tenha sido o melhor jogador da década passada no basquete profissional americano: alguns vão além e o colocam como o maior da história da franquia roxa e dourada oriunda em Minneapolis, hoje em Los Angeles.
Bryant deu a sorte e o azar de florescer para o basquete americano quando o reinado de Michael Jordan se encerrava ao final dos anos 1990. Coube a ele ocupar o lugar deixado pelo camisa 23 do Chicago Bulls como estrela maior da Liga e ser comparado a Michael para a glória momentânea ou para a execração duradoura. Para os que vieram depois dos anos 90, Kobe foi Jordan. Foi o Jordan que conseguimos ver. Foi o nosso Jordan. Foi o exemplo maior de idolatria por um jogador e sua técnica, sua mágica, sua mística. A marca de seu nome na história do esporte pode ser elucidada simplesmente porque não se precisa do nome e do sobrenome para saber dos lendários: há Pelé, há Michael, há Ali, há Diego, há Owens, há Phelps, há Bolt. E há Wilt, há Kareem, há Bird, há Magic, há Kobe. E daqui a muitos anos haverá LeBron, haverá Messi, e outros, e outros. O imprescindível ao esporte é que haja sempre amor, haja sempre paixão, haja sempre aquele que encante o menino de nove anos na frente da TV, faça o moleque de 16 ir dormir todo dia bem tarde pra te ver jogar, faça o cara de 25 anos escrever um artigo simplesmente pra dizer que teve sorte: sim, tive sorte de ver Kobe Bryant jogar e tive o azar de ainda não vê-lo em nenhuma partida nessa temporada. Não posso mais me atrasar. O tempo passa rápido demais para levar nossos ídolos e heróis da ação das quadras para o pedestal dos mitos e lendas. Azar dos simplesmente mortais que não jogarão mais contra ou ao lado de Kobe Bryant. A todos eles e a vocês, aproveitem Kobe. Ao menino de seis anos com a bola de meia nas mãos e o relógio contando: aproveite, Kobe.