A história do basquetebol brasileiro possui vínculos profundos com o desenvolvimento do esporte no interior do estado de São Paulo.
Há pelo menos quatro décadas, cidades como Rio Claro, Limeira e Franca têm se constituído em verdadeiros oásis da bola laranja em um território em que o descaso com o esporte olímpico e a predominância massiva do futebol sobre as outras modalidades está sempre muito presente.
Representante dessa cultura ‘basqueteira’ do interior paulista, o treinador rio-clarense Gustavo Freitas – conhecido no meio como ‘Montanha’, tem mesclado a manutenção da tradição local com uma adaptação às novas oportunidades trazidas pela globalização para seguir formando talentos da região.
Depois de mais de dez anos trabalhando entre as categoria de base e o basquete profissional de equipes como Limeira e Rio Claro, Montanha decidiu empreender fundando a ‘New Sports Network’ – empresa a partir da qual facilita o intercâmbio de jogadores brasileiros com colégios, universidades e camps de basquete realizados nos Estados Unidos.
Nesta entrevista exclusiva concedida à Central do Draft, o treinador faz um apanhado de tudo isso, oferecendo suas perspectivas sobre a esfera local ao comentar a força das raízes do interior paulista no basquetebol e traçando as principais diferenças estruturais e conceituais nos processos de formação de atletas no Brasil e nos Estados Unidos.
Veja abaixo a íntegra do bate-papo:
Central do Draft – Como alguém que nasceu em Rio Claro e trabalhou por muito tempo na região, gostaria que você comentasse sobre a tradição dessa região do interior de São Paulo no basquetebol sob o ponto de vista da adesão da garotada ao esporte.
Existe um interesse especial dos garotos da região pelo basquete? Como os clubes lidam com isso? A prioridade é dar espaço, na base, para os jovens locais ou a montagem do elenco é feita a partir de um garimpo de atletas de todo o Brasil?
Gustavo ‘Montanha’ – Nasci em Rio Claro e aqui o basquete é muito forte. Tivemos times que ganharam tudo na década de 1990, sempre teve muito incentivo, jogadores de seleção paulista, brasileira e etc. Desde a época que eu atuava como atleta. Quando parei de jogar, fui convidado para trabalhar nas categorias de base da equipe de Limeira ainda como estudante de educação física e, nos mais de oito anos que fiquei por lá, formamos mais de 20 atletas que jogaram profissionalmente e/ou foram jogar basquete nos Estados Unidos.
Além disso, chegamos a contar com mais de 100 meninos nas escolinhas. Nossa prioridade no clube era contar apenas com jogadores de Limeira e região até a categoria sub-15. Até porque tinha muita procura, graças ao fato de ser um local de uma ‘cultura basquetebolítica’ muito forte. A partir do sub-16, sub-17 passávamos a incrementar as equipes com meninos de fora. O trabalho foi muito bom. Formamos muitos atletas.
Central do Draft – Você teve a oportunidade de trabalhar fora do Brasil, incluindo uma passagem importante pelo high school norte-americano. Quais são as principais diferenças entre as ‘bases de formação’ dos Estados Unidos em relação ao que temos aqui?
Gustavo ‘Montanha’ – Eu já fazia um trabalho de levar garotos brasileiros para disputarem camps nos Estados Unidos quando fui convidado pra ser técnico de uma high school e daquilo que eles chamam de prep school, onde a gente preparava meninos do mundo inteiro para o basquete universitário.
Fiquei quase dois anos e meio por lá e o que me chamou a atenção é que eles têm muita quantidade. Muita gente trabalhando com o basquete, muitas escolas, tanto públicas quanto particulares, com programas no masculino e no feminino.
A maioria dessas escolas conta com uma estrutura fantástica. Noventa e cinco por cento das quadras são climatizadas, com seis tabelas. As escolas maiores contam ainda com diversos treinadores, sala de musculação, profissionais de nutrição.
O único ponto que eles pecam, na minha visão, é que nos ‘programas menores’ existem muitos treinadores sem formação em educação física, algo que considero importantíssimo na categoria de base. Não é raro vermos professores de inglês, de história e até mesmo pais de jogadores trabalhando como técnicos de basquete nesses locais.
Quanto ao estilo de jogo, observei uma ênfase maior na questão individual. Um jogo mais físico, de pouca estrutura tática, no qual cada menino tenta mostrar seu valor individual para ganhar um convite para atuar no basquete universitário.
No Brasil, a gente trabalha um jogo mais tático e pensado, com uma proximidade maior com o basquete europeu.
Central do Draft – Hoje, você tem na New Sports Network uma empresa que facilita a ida de jogadores brasileiros para o basquete norte-americano. A impressão que eu tenho é que, em um contexto geral, essas oportunidades de intercâmbio hoje são muito maiores do que eram há dez, 20 anos. Como você acredita que essa ‘rota globalizada’ pode contribuir para o basquete brasileiro?
Gustavo ‘Montanha’ – Depois que eu saí dos Estados Unidos, fundei a empresa para facilitar a ida dos meninos brasileiros para lá, tanto para jogar no basquete universitário ou no colegial, quanto para participar de camps pontuais e entender como funciona esse basquete a partir da oportunidade de jogar contra eles.
Há dez, 20 anos eu nem pensava em fazer esse tipo de viagem. O acesso era muito mais difícil e muito mais caro também. Eu sempre comento com os garotos que eu gostaria muito de ter tido essa oportunidade quando eu era atleta.
Essa maior facilidade de intercâmbio não beneficia apenas o basquete, mas a formação do cidadão em geral. Muitos meninos que a gente leva pensam em conciliar o basquete com o estudo, algo que hoje, sem dúvidas, o Estados Unidos é o melhor lugar para se fazer.
O garoto pode ir para lá e depois retornar para jogar basquetebol profissional – seja no Brasil ou na Europa, ou seguir a profissão na qual se formou.
A gente já atendeu mais de 200 meninos entre camps, basquete colegial e basquete universitário. Para alguns deles, a gente consegue até bolsa de 100%. Trabalhamos com garotos de 12 a 17 anos dos mais variados níveis. Tem meninos de nível de seleção brasileira e tem meninos de nível escolar. A experiência é fantástica para ambos.
Central do Draft – Caminhando um pouco para seus conceitos e ideias como formador… O que você mais observa/mais te chama a atenção nos jovens jogadores em cada uma das posições do jogo?
Gustavo ‘Montanha’ – Antes de tudo, o que me chama a atenção em qualquer jovem atleta é observar o quanto ele é ‘treinável’. Essa é uma palavra que se usa muito lá fora e diz respeito à capacidade do jogador assimilar novas informações, novos treinamentos e se adequar àquilo que o técnico quer.
Outra questão-chave que cabe a todas as posições se refere à leitura de jogo e ao domínio dos fundamentos básicos, pois, tendo isso, a chance do jogador se adaptar em qualquer lugar da quadra cresce bastante.
Agora, falando especificamente de cada posição eu citaria:
Armadores – pra mim, o bom armador é o cara que precisa pensar o jogo, ser frio e ter uma leitura excepcional. Temos vivido uma escassez desse perfil. Os armadores da nova geração estão muito altos e físicos, com menos características ‘clássicas’ da posição.
Alas-Armadores – precisam ser bons arremessadores, mas também capazes de sustentar situações em que um armador ‘puro’ não estiver em quadra. Para tanto, é preciso que eles se adaptem também a cenários de drible. Ser capaz de levar a bola – além de finalizar.
Alas – essa posição depende muito da preferência do técnico. Eu olho bastante a versatilidade. Se consegue defender caras grandes, pequenos – atuar nas posições 3 e 4, atacar a tábua de rebotes e arremessar de três pontos.
Pivôs – é a posição que mais está mudando no basquete globalizado. Continuam sendo caras grandes, mas precisam cada vez mais defender jogadores menores por conta dos cada vez mais comuns sistemas de cinco abertos. A capacidade de passar a bola e arremessar de média e longa distância também tem sido cada vez mais valorizada.
Central do Draft – Quais são os atributos de um destaque de categoria de base que mais se traduzem da base para o profissional?
Gustavo ‘Montanha’ – É preciso estar disposto a manter o foco, treinar muito e ser um cara paciente. A maioria dos garotos que é protagonista na categoria de base acaba se deparando com uma outra realidade na equipe profissional, tendo que se adaptar a papéis menores para ajudar a equipe até que chegue o momento ideal para colocar a sua individualidade em prática. Para ‘dar certo’, o garoto precisa ser treinável, mantendo, claro, a identidade que o levou até ali.
Central do Draft – E no outro lado da moeda? Que questões permitem que os atletas se destaquem nas categorias de base, mas que – não necessariamente – se transferem para o basquete profissional?
Gustavo ‘Montanha’ – Diria que é o inverso da resposta anterior. Muitos atletas que são ‘bajulados e endeusados’ na base são ‘enquadrados’ pelos adultos ao chegarem no profissional. Nesse contexto, eles precisam estar dispostos e ter resiliência para se adaptar à nova realidade e sobreviver a esse período de transição para não ficar no meio do caminho.
Central do Draft – Para você, quais são as principais lacunas da formação de jogadores no país?
Gustavo ‘Montanha’ – Somos um país muito grande, mas que tem muito poucas equipes. Poucos jogos. Além disso, tudo é muito caro para se manter uma equipe de base – seja pelas taxas das competições ou pelas viagens. Outros países contam com dez vezes mais times. Na Argentina, por exemplo, só em Buenos Aires.
Além disso tem a questão política da CBB, muita dependência do governo. Enfim, é um período complicado.
Citaria ainda a necessidade de maior qualificação dos profissionais que trabalham na base e a vinculação dessa qualificação com a maior presença do esporte nas escolas a fim de aumentarmos o interesse e a quantidade de praticantes de basquete no Brasil.