Do protagonismo do Pitt/Corinthians – da cidade de Santa Cruz do Sul, três vezes finalista nacional na década de 1990, para a total ausência de representantes nas últimas duas edições do NBB, o Rio Grande do Sul tem passado por um momento difícil quando o assunto é basquetebol profissional.
O motivo para tal cenário não é outro se não a falta de investimentos consistentes na modalidade.
Apesar disso, a tradição e o sucesso em um passado não tão distante seguem gerando frutos e mantendo acesa a fagulha da bola laranja no estado, enquanto as equipes locais batalham por condições que as oportunizem retornar à elite do basquete brasileiro.
Um dos melhores representantes dessa habilidade de manter a chama da modalidade acesa na região, a despeito de condições desafiadoras, é o treinador Athos Calderaro – comandante do União Corinthians – o Unico, herdeiro da tradição do Pitt, na cidade de Santa Cruz do Sul.
Natural do município, o treinador tem emprestado um know-how adquirido em seus anos como atleta profissional e mais de uma década como treinador para encabeçar um projeto que mantém a equipe como representante do estado na Liga de Desenvolvimento de Basquete (LDB), principal competição da categoria de base nacional.
Em sua trajetória pela equipe, Calderaro, que é formado em Educação Física pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), é octacampeão gaucho nas categorias de base e ganhou destaque nacional ao trabalhar como assistente técnico das seleções brasileiras sub-17 e sub-19, entre os anos de 2011 e 2013.
Pilar do basquete gaúcho na última década, o treinador é o protagonista da sexta edição da série ‘Chaves da Formação’.
Confira a entrevista na íntegra:
Central do Draft – A região sul do país tem tido pouca representatividade no NBB e atualmente tem no Pato Basquete seu único representante. A que você atribui esse cenário? Como você vê o basquete sulista na atualidade?
Athos Calderaro: Eu posso falar pelo Rio Grande do Sul. Infelizmente, aqui no estado não há o habito de investir em outros esportes que não seja o futebol. Tivemos a experiencia de Caxias do Sul, que fez uma boa campanha – ficando em quinto lugar no NBB, mas depois não conseguiu patrocinadores para a continuidade do projeto.
Primeiro, pela minha cidade Santa Cruz do Sul, que é uma cidade apaixonada pelo basquete, onde até jogo de categoria de base tem lotado ginásio hoje.
Na década de 90, nós tivemos uma estrutura profissional de basquete, que nos rendeu um título nacional em 1994 e dois vices-campeonatos nacionais em 1997 e 1998.
Na época, aliás, a cidade servia como centro de treinamento para a seleção brasileira adulta.
Hoje, a cidade continua com essa paixão pelo basquete, mas a falta de investimento maior das empresas não permite a retomada de uma equipe a nível de NBB. Mas, em contrapartida, com a coordenação do nosso diretor Diego Puntel, montamos uma estrutura muito boa para as categorias de base aqui no Esporte Clube União Corinthians.
Temos uma parceria com a prefeitura municipal e a UNISC, junto com o Projeto Cestinha (projeto de massificação do basquete na área social e tem equipes de competição até a categoria sub-16).
Hoje temos categorias do sub-12 ao sub-23 masculino e temos o feminino – do sub-12 ao sub-18, e participamos de competições promovidas pela CBC junto com a CBB, e da Liga de Desenvolvimento (LDB). Além disso, temos o objetivo de jogarmos um brasileiro da CBB.
Dessa maneira, trabalhando dentro da nossa realidade, conquistamos em 2018 o vice-campeonato brasileiro sub-21 e estamos indo passo a passo, para um dia termos uma estrutura profissional a nível de NBB.
Central do Draft: Comente um pouco sobre sua pró-atividade e engajamento em atividades de intercâmbio de informação e capacitação, como as que você participa junto ao UOUS e outras – como a clínica de basquete do treinador do Spurs – Gregg Popovich. Qual a importância dessa constante troca de experiências e conhecimento entre os treinadores para o desenvolvimento do basquete nacional?
Athos Calderaro: Com a chegada da epidemia, a formação da quarentena, tivemos que nos reinventar, e, com isso, oportunizou um processo de estudo e intercâmbio muito grande entre os profissionais de diversas áreas. O surgimento da UOUS Basketball, criada pelo David Pelossini, foi o pioneiro dessas atividades, foi formado um grupo de estudo do basquetebol, onde compartilhamos e aprendemos com todos. O David foi muito feliz quando definiu a UOUS como um local de estudo do basquete onde todos os participantes têm a possibilidade de aprender e compartilhar seu trabalho (com estudo). Reuniões semanais de diversas áreas relacionadas com o basquete fazem da UOUS, um grupo de desenvolvimento do basquete. Com isso, ela é chancelada pela ATB.
Participo também quando há a oportunidade de outras palestras importantes, como a que você citou, com o Gregg Popovich, que foi de muito aprendizado e me fez entender que, no basquete, quanto mais simples, melhor.
Acho que um dos ensinamentos desta quarentena será a aproximação dos profissionais e o compartilhamento de conhecimento. Tenho certeza de que, quando retornarmos às nossas atividades, todos irão estar muito mais preparados e motivados.
Central do Draft: Como ex-jogador de basquete, você acredita que essa experiência como atleta agrega ao trabalho seu trabalho como treinador? Como balancear seus conceitos formados durante os tempos de jogador à teoria do jogo e como esses ‘dois lados’ se complementam?
Athos Calderaro: É muito importante ter tido a experiência como jogador de basquete, apesar de não ter tido um nível de qualidade a nível nacional, já que fiquei mais restrito à região Sul.
Mas não faltou empenho, foco, dedicação e diversas experiências que só quem joga tem a percepção. Isso me ajuda muito no processo de formação dos atletas e, com o passar dos anos, agregando essa experiência ao amadurecimento com os conhecimentos que adquiri, acabei formando uma identidade minha como técnico.
É importante entender que antes de atletas, estamos trabalhando com pessoas, e o entendimento do comportamento pessoal é único. Por isso, o ensinamento vai além do jogo. É preciso criar respeito, ajudar, aprender a escutar, procurar fazer uma diferença positiva na vida das pessoas.
Central do Draft: Como foi sua experiência na seleção brasileira? Como é a rotina preparatória para os campeonatos? Se assemelha, em alguma forma, ao voleibol – onde os atletas ‘selecionáveis’ se reúnem periodicamente no centro de treinamento da CBV para treinamentos ou é algo mais pontual?
Athos Calderaro: Minha experiência com a seleção brasileira foi muito boa. Foi no período de 2011 a 2013, quando o objetivo era chegar no mundial sub-19, com a geração nascida em 1994.
Nossa comissão técnica era comandada pelo Demetrius Ferracciú, que fez um ótimo trabalho e nos passou muito conhecimento, mostrando toda a sua qualidade ímpar de conhecimento do jogo, resultado da sua carreira vitoriosa como atleta.
A preparação foi feita em São Sebastião do Paraíso (MG), muito bem planejada na época pela CBB. No primeiro ano, em 2011, nos preparamos em vários períodos longos de treinamento para o sul-americano sub-17 realizado em Cúcuta, na Colômbia, onde fomos campeões de forma invicta, ganhando duas vezes da Argentina dentro da competição.
Em 2012, disputamos a Copa America sub-18, que foi realizada no Brasil, em São Sebastião do Paraíso, e ficamos como o vice-campeonato. O ponto marcante dessa competição foi a vitória na semifinal contra a seleção do Canadá, que tinha como destaque o Andrew Wiggins, hoje jogador da NBA, e tinha chegado como a seleção favorita a fazer a final contra os Estados Unidos.
Em 2013 disputamos o Mundial sub-19, em Praga, na República Tcheca, onde treinamos durante quase dois meses direto. Terminamos o torneio na décima colocação, em uma competição que revelou muitos jogadores para a NBA, como Marcus Smart, Jahlil Okafor, Dario Saric, Dante Exum, Aaron Gordon, entre outros.
Da nossa seleção praticamente quase todos atletas estão jogando o NBB ou outras competições importantes, como Arthur Pecos, Du Sommer, Danilo Fuzaro, Antonio, Derik Ramos, Léo Demétrio, Felipe Braga e Lucas Dias.
Central do Draft: Caminhando um pouco para seus conceitos e ideias como formador… O que você mais observa/mais te chama a atenção nos jovens jogadores em cada uma das posições do jogo?
Athos Calderaro: Hoje, antes de falar nas características especificas para cada posição, procuro analisar a capacidade do atleta em atuar por funções; o jogo de basquete hoje exige muita versatilidade do atleta e um entendimento cognitivo muito apurado.
Armador: é uma função muito importante no jogo porque é onde muitas vezes irá começar e poderá terminar uma ação ofensiva. É necessário ter uma leitura de jogo apurada, entendimento da defesa adversária, importante ter uma capacidade de organizar e também de pontuação. Possuir um bom arremesso é muito importante; ter uma consistência na defesa é fundamental, em cima disso ter velocidade, habilidade, liderança e personalidade.
Ala/armador: função onde o jogador tem que ter o domínio da armação, e ter uma capacidade finalização de arremesso, ter o conhecimento de atacar e distribuir a bola;
Ala: função onde o jogador tem que ter a capacidade física e técnica para jogar tanto como exterior ou interior, importante ter um bom arremesso, domínio de bola, e saber defender jogadores exteriores e interiores.
Ala/pivô: hoje se tornou uma das posições mais importantes e que evoluíram no jogo, o atleta tem que ter um pouco de cada posição, saber driblar, passar bem a bola, ter um bom arremesso, jogar como exterior e interior, ter bom rebote, correr bem na quadra, e, na defesa, ter a capacidade de marcar jogadores exteriores e interiores.
Pivô: uma função que mudou muito com a velocidade do jogo, mas o atleta deve saber dominar o jogo interior de costas para a cesta e tem que se fazer presente nessa função. É importante ter força física, altura, capacidade de dominar o rebote, ter a leitura correta na execução dos bloqueios direto e indireto, e importante cada vez mais evoluir na defesa, porque muitas situações ofensivas são criadas em cima do jogador da posição 5.
Central do Draft: Quais são os atributos que mais se traduzem da base para o profissional?
Athos Calderaro: O atleta, para chegar no profissional, é necessário que tenha uma qualidade técnica muito apurada, e, principalmente, uma leitura de jogo e personalidade, saber lidar com sua mente para entender que, no profissional, ele deixa muitas vezes de ser o principal jogador que era na categoria de base para começar a trilhar seu espaço num funil, onde é necessário muito foco e entendimento do jogo de basquete.
Central do Draft: E no outro lado da moeda? Que questões permitem que os atletas se destaquem nas categorias de base, mas que – não necessariamente – se transferem para o basquete profissional?
Athos Calderaro: Na categoria de base, muitas vezes o aceleramento do processo de maturação física e cognitiva faz uma grande diferença. Muitas vezes, isso se torna prejudicial para o atleta quando ele tem o entendimento de que vai levar essa vantagem para categoria adulta, e acaba perdendo o foco em trabalhar melhor suas habilidade técnicas e o conhecimento do jogo.
Central do Draft: Para você, quais são as principais lacunas dos jogadores formados no Brasil – que deveriam receber mais atenção dos responsáveis pelo desenvolvimento dos jovens atletas do país?
Athos Calderaro: Penso que começamos muitas vezes a jogar basquete muito tarde, e isso faz uma enorme diferença no desenvolvimento do atleta. Hoje temos, por exemplo, muitos armadores estrangeiros de destaque no Brasil. A questão do desenvolvimento da qualidade é mostrada em grande parte nas ações ofensivas de leitura de jogo e, em consequência, o jogo de pick and roll.
Nas categorias de base, por muitas vezes, os atletas têm uma facilidade maior de jogar em dupla, devido ao fato das defesas não proporcionarem uma dificuldade maior, cenário que faz com que o jogador (armador) chegue na categoria profissional sem ter um entendimento maior do jogo de pick and roll, e, por conta disso, fique muito atrás de outros armadores.