Quem já assistiu a “The Last Dance” sabe que Jerry Krause é retratado como o grande vilão da jornada de glória do Chicago Bulls da década de 1990. Pela lente do diretor Jason Hehir, o ex-dirigente da equipe era um executivo egocêntrico que estava pronto para desmontar o elenco hexacampeão da NBA por acreditar que recebia bem menos crédito do que merecia pelos seis títulos conquistados.
Mas Krause, falecido em 2017, estava preparado para contar a sua versão da história antes de morrer: o ex-GM deixou um livro de memórias não finalizado. O repórter KC Johnson, da rede NBC Sports, conseguiu acesso ao texto e autorização para publicar alguns trechos diante da exibição do documentário. O extrato a seguir é a tradução de um dos trechos, feita por Thiago Waldhelm.
“Lá está Jerry Krause, o cara que desmontou a dinastia campeã.”
“Olha lá o Jerry Krause, o cara com ego enorme que quis montar um time campeão sem Michael Jordan e Phil Jackson, o cara que se achou mais importante que jogadores e técnicos.”
Se eu vi ou ouvi citações como estas milhares de vezes em diferentes publicações e lugares pelos EUA, pode ter certeza que houve milhares delas que eu nem fiquei sabendo.
Até agora, enquanto você lê essas palavras, ninguém além de Jerry Reinsdorf, de mim e de poucas pessoas na organização do Bulls realmente sabe o que aconteceu no desfecho da vitória de nosso sexto campeonato mundial em oito anos.
Será que desmontamos o time vencedor para satisfazermos nossos próprios egos e vencermos sem aqueles jogadores e técnicos? Acha mesmo que pessoas que trabalharam por tantos anos para vencer, e depois vencer de novo e de novo, seriam burras o suficiente para deixarem os egos atrapalharem a tentativa de vencer de novo?
Você acha que uma organização construída com um único propósito, desde seu presidente até o nível hierárquico mais baixo na gerência — vencer campeonatos -, desistiria tão fácil desse pensamento?
Mas para os fãs e para a mídia, nós tínhamos Michael Jordan, e ele podia superar qualquer coisa. Ele podia jogar sem pivô e sem ala-pivô em um time com pouca ou nenhuma flexibilidade salarial, e mesmo assim vencer sozinho. Ou Scottie Pippen, com duas cirurgias nos dois anos anteriores, podia se elevar à altura da situação e vencer sem MJ e com um elenco de apoio em declínio.
Tínhamos o melhor técnico da liga, Phil Jackson, que, sem o conhecimento do público, não queria treinar um time em reconstrução e havia nos informado antes da temporada começar que ele desejava ir para Montana e tirar pelo menos um ano sabático.
Agora, vou transportá-lo, leitor, a um lugar onde ninguém de fora do Bulls esteve: uma reunião no começo de julho de 1998. Estavam presentes Jerry Reinsdor, eu, Jim Stack (GM Adjunto), Al Vermeil, os médicos e cirurgiões do time, Irwin Mandel (VP de Finanças) e Karen Stack (Assistente de GM).
Vermeil sabia mais sobre a condição física dos jogadores até mesmo que o corpo médico. Ele havia feito testes constantes durante todo o campeonato, dentro e fora da temporada. Havíamos pedido ao então treinador Chip Schaefer para enviar um relatório por escrito sobre a saúde do time. Phil já tinha decidido sair do time oito meses antes da reunião.
A primeira pergunta que fiz foi o quanto as pessoas achavam que conseguiríamos extrair de Luc Longley, que seria um agente livre e que tivemos que descansar periodicamente durante os anos anteriores devido à instabilidade de seus tornozelos. Al e os médicos criam que ele iria se deteriorar rapidamente.
Próxima pergunta: Rodman? Cada um na reunião estava preocupado que as aventuras de Dennis fora da quadra tinham cobrado seu preço, e que ele estava jogando na reserva do tanque ao final da temporada.
OK. Sem pivô, sem ala-pivô, pouquíssimo espaço salarial para assinar qualquer um de qualidade para substituí-los. Quem defenderia o garrafão se Jordan e Pippen voltassem? Quem pegaria os rebotes?
Vamos a Pippen. Ele teve duas cirurgias grandes em dois anos, uma delas no final do verão, propositalmente desafiando nossas instruções de fazê-la mais cedo a fim de não perder jogos na temporada regular. Ele quer, com razão, ser pago com salário de superestrela. Vale o risco, principalmente se não conseguirmos achar um pivô e um ala-pivô, e ele e Michael precisarem carregar o time nas costas para um novo técnico? Duvido muito.
Será que Michael consegue continuar sua grandeza sem pivô, ala-pivô e talvez sem Pippen? Será que Bill Russell, o maior companheiro de time que já existiu, conseguiria ter vencido sem grandes jogadores ao seu redor? Não. Michael já deixou bem claro que não vai jogar para outro técnico além de Phil. Phil já nos disse que vai embora. O que Michael vai fazer?
Os jogadores de apoio importantes como Steve Kerr e Jud Buechler são agentes livres que podem conseguir mais dinheiro de outros times do que nós conseguimos oferecer sob as regras do teto salarial.
Será que conseguimos fazer Phil treinar o time sem um pivô e um ala-pivô estabelecidos, provavelmente sem Pippen, e com basicamente um banco inteiro novo e expectativas malucas de que “em Michael nós confiamos” pode vencer sem ajuda? Sem a menor chance.
Se coloque em nosso lugar enquanto saímos daquela sala. O que você faria? Nós desmontamos a dinastia, ou a dinastia estava se desmontando devido a idade, desgaste natural de jogadores da NBA sem tempo para se recuperar e regras salariais vigentes?
Uma coisa que de fato fizemos foi nos assegurarmos que nenhuma informação que pudesse comprometer as chances de qualquer jogador assinar um bom contrato vazasse daquela reunião. Phoenix deu segurança vitalícia para Longley na forma de um contrato de cinco anos e muitos dólares. Três anos depois, ao ser despejado pelo Suns em um desavisado Knicks, Longley se aposentou e foi para seu país nativo.
Rodman jogou mais 35 jogos, sem nunca voltar à sua forma anterior.
Conforme o verão passou e os jogadores foram expulsos dos centros de treinamento pela liga — o que significou que a temporada não começaria até o final de janeiro -, a situação piorou. Michael cortou seu dedo num cortador de charutos, o que o impediria de jogar durante a temporada inteira. Em sua defesa, ele poderia ter omitido essa informação e assinado um contrato imenso conosco. Mas foi honesto e nós fomos informados da situação de sua mão. Ele não queria jogar num time em reconstrução, e manteve sua palavra.
Em janeiro, quando a temporada estava prestes a começar e os agentes livres podiam ser assinados, osa gentes de Pippen nos pediram para fazermos uma favor a Scottie: uma sign-and-trade com Houston, através da qual Scottie podia conseguir $20 milhões a mais do que por um contrato simples com eles. Jerry e eu demos esse presente de despedida a ele. Liguei para Steve e Jud e informei-os da situação, dizendo para pegarem o primeiro bom contrato que os oferecessem, porque não poderíamos cobrir a oferta. Eles mereciam.
Aí está, a verdade.
A tradução original feita por Thiago Waldhelm pode ser conferida aqui.